ALBUFEIRA
Um espelho que reflecte a vida, que passa por nós num segundo (espelho)
Cenários Desenquadrados (7)
Ficheiros da Desintegração
As Necessidades Extraordinárias do Gato Tobias
(sob critério SMALL)
Recolha de indícios, de lacunas e de outras descompensações, entre os mundos imaginados e a realidade dos humanos.
Dogão o cyborg – um animal mecânico
Em marcha lenta e de olhos bem abertos, o grupo avançou uns duzentos metros ao longo do túnel, sem que se registassem qualquer tipo de incidentes ou qualquer indício de actividades estranhas na sua proximidade. Situação que apesar de todos os cuidados assumidos por todos não deixava descansado o João, dado o percalço anterior que tinham vivido há poucos metros atrás e que nunca deveria ter acontecido, mas que no entanto quase que os surpreendera, podendo ter causado vítimas desnecessárias por evitáveis, entre os oito componentes do grupo. Foi assim natural que chegados à marca de dois quilómetros que indicava a distância que faltava até ao fim desta secção – e à porta de ligação com a parte final do túnel – o João tenha decidido parar por momentos a sua progressão, optando pela utilização previa e como reforço de segurança do varredor de movimentos, que transportava consigo desde que o descobrira num doa armários do abrigo: apesar de ultrapassado o equipamento ainda conseguiria fazer uma cobertura fiável de toda a área que os circundava num raio de quase cinco mil metros, o que chegava e sobrava para abranger toda a parte ainda a percorrer no interior desta secção. Enquanto as bio-máquinas iam patrulhando as imediações do local que ocupavam actualmente sendo para tal orientadas por um dos batedores, o restante grupo reuniu-se em volta do João, observando com o maior interesse e atenção a imagem que o varredor ia recolhendo – e tratando no seu processador – e que eles iam visionando no respectivo monitor após o respectivo tratamento de dados. Mal o varrimento terminou e a imagem se fixou no ecrã do monitor, todos puderam verificar a existência dum longo e estreito canal subterrâneo de origem artificial vindo do lado da Serra de Monchique – só conseguiam visualizar os últimos cinco quilómetros – e que na zona da Guia se bifurcava noutros três canais de menores dimensões, um deles parecendo ter sido interrompido na sua construção e os outros dois dirigindo-se a dois pontos distintos do túnel, ambos situados na secção intermédia na qual se encontravam no momento: um desses canais já eles o tinham encontrado anteriormente no seu trajecto quando o buraco se abrira diante deles, enquanto que o outro parecia ir dar a um ponto muito mais perto do fim desta secção, sendo no entanto um pouco confuso o seu fim e a sua ligação à estrutura do túnel, já que se fragmentava a partir dum determinado local num sistema intrincado de redes que se cruzavam de tal maneira, que se tornava difícil situar precisamente o local mais propício para o estabelecimento do acesso final, através dum novo buraco aberto na sua parede. Quanto ao detector de movimentos o aparelho nada assinalava, o que não deixava de ser estranho dada a forte possibilidade dos anteriores Z estarem acompanhados por outro grupo de Z (de apoio) localizado muito perto dos seus companheiros de luta; além do João e do restante grupo estarem convictos que a presença de Z-XXL ou mesmo dos seus antecessores Z-XL ser cada vez mais forte e interventiva, podendo agora todos os Z recorrer a tecnologia avançada e diferenciada que até os poderia fazer desaparecer estrategicamente do ecrã, como se não existissem apesar de já lá estarem e muito provavelmente à espera deles. A única vantagem que poderiam ter sobre os Z seria a notícia que de certo estes já teriam recebido da sua derrota absoluta no confronto anterior contra os seus inimigos, o que logicamente iria preocupar e amedrontar especialmente os Z-XXL, Alis agora transformados em seres mais observadores e reflexivos que já se preocupavam mais com a sua manutenção tanto física como psíquica, tornando-se para este fim mais planificados, organizados e sendo capazes de olhar para lá do momento e do espaço específico – o que até se poderia tornar uma desvantagem conforme fosse o ponto de partida da análise. Antes de partirem o Tobias ainda viu o Humano (o João) e o Albino a afastarem-se um pouco em direcção a um pequeno relevo existente na parede do túnel ao nível quase do chão – mas não visível do ponto onde se encontrava o gato, o que significava que os dois sabiam da sua existência – accionando algo e provocando de imediato uma pequena vibração e alguma interferência atmosférica, que afectou por uns segundos todos os aparelhos eléctricos que o grupo transportava consigo: pelos vistos os dois tinham decidido emitir um pedido de ajuda urgente a algum comando central de operações, de modo a poderem prosseguir a sua viagem previamente planeada tendo a certeza que não seriam de novo surpreendidos com consequências que poderiam ser desastrosas. A ordem dada pelo Albino foi para se continuar, mantendo o máximo de atenção possível. Faltavam apenas dois mil metros.
Mas uma primeira surpresa estava reservada para o grupo. Já tinham recomeçado a sua marcha em direcção a Albufeira, quando as duas B-M se deslocaram subitamente em direcção a um dos batedores, respondendo a uma solicitação urgente vinda do mesmo para realizarem uma inspecção rápida num ponto situado a cerca de quinhentos metros à sua frente: o equipamento detector registara no primeiro instante movimento a pouco menos de um quilómetro, confirmando de imediato a presença de um elemento que ali não estava ainda há poucos minutos e que agora se dirigia rapidamente na sua direcção. Parecia ter-se introduzido por um dos três sistemas de ventilação do túnel (um por secção) localizados no seu nível superior e que em princípio seriam inacessíveis – excepto para os seus técnicos e responsáveis pela sua implementação, que por acaso nunca mais aí se tinham deslocado por razões de segurança – e por outro lado, pela análise de todos os dados até agora recebidos esse elemento seria sem dúvida um artefacto mecânico, equipado por um processador de capacidade média e utilizando hardware e software de origem garantidamente terrestre. O que era muito estranho para o batedor, já que não era conhecida nesta zona nenhuma indicação da presença de qualquer tipo de técnicos de apoio actuando no exterior e ainda por cima os respiradouros colocados à superfície se encontravam em zonas inacessíveis e indetectáveis (e se necessário susceptíveis de serem recolocados e readaptados). O grupo foi então convidado a interromper a sua marcha e enquanto todos se reagrupavam num círculo defensivo já com a presença das B-M, ficaram ansiosos a aguardar: pouco tempo passado uma primeira sombra surgiu bem lá ao fundo no túnel, revelando à medida que se aproximava os seus contornos, a sua forma e de como o seu corpo se adaptava à locomoção. Parecia deslocar-se sem nenhuma preocupação de segurança, movimentando-se com pequenos intervalos consecutivos em que o seu corpo parecia erguer-se e voltar a descer compassadamente e emitindo um som estranho que mais perto se assemelhava muito a um latido: revelava não estar equipado de nenhum tipo de arma defensiva ou ofensiva e confirmadamente todo o material utilizado na sua concepção e restante equipamento acoplado, poderiam ser considerados de nível artesanal. Um pouco mais tranquilos com o evoluir da situação todo o grupo ficou em estado de espera aguardando com muito curiosidade a chegada da máquina. E foi o Tobias quem ficou mais espantado a quando da sua chegada, ouvindo-se claramente vindo de si: “Não me acredito”!
Quem estava agora parado diante do grupo a latir de alegria e a abanar de contente todo o seu corpo mecânico – e que o Tobias tão bem conhecia – era o Dogão, um cão que o Tobias montara com a ajuda do seu companheiro e amigo de brincadeiras o Dog, aproveitando muito do material recolhido pelos dois amigos ao longo de muitos passeios nocturnos e incluindo muitas horas de trabalho dispendidos na sua montagem, utilizando para tal e basicamente um modelo representando um cão da Lego, um esquema técnico e pormenorizado dum robot japonês obtido entre os desperdícios duma loja de produtos asiáticos e muito hardware e software já abandonado na garagem (por desactualizado) pelo seu dono. O que o Tobias nunca esperara era vê-lo ali a funcionar, até porque nunca tivera ocasião para o experimentar – apesar de todos os ensaios anteriores terem sido um sucesso, tudo confirmando que o seguinte e último também o seria – pois necessitava dum equipamento de hardware que ainda não conseguira arranjar, talvez por ser mais recente e ainda ser muito utilizado. Mas quem o teria concluído e finalmente posto a funcionar? Como tinha ele descoberto a entrada para o túnel? E mais importante ainda, quem o enviara e qual o motivo da sua presença?
Após o Tobias ter elucidado e tranquilizado todos pela presença do Dogão, todo o grupo se juntou à sua volta para ver e admirar este modelo robotizado, construído com material ultrapassado mas ainda útil e reaproveitável e que demonstrava a capacidade criativa do Tobias e de como com pouco e velho se poderia construir muito e novo. O Tobias aproveitou a ocasião de todos estarem a apreciar o cão mecânico, para verificar também alguns pormenores que pudessem ter sido alterados ou acrescidos na sua conclusão e lembrou-se então de verificar se o registo de imagens que o equipava se mantinha, já que poderia ter acesso ao registo de imagens anteriores: é que o cão estava equipado dum registo automático de vídeo que ia arquivando todas as imagens obtidas no decorrer do tempo em que estivesse ligado, o que lhes poderia responder a muitas das suas mais importantes questões e dúvidas. O Tobias avisou o grupo do facto e pedindo-lhes que se afastassem um pouco para melhor visionamento por parte de todos, recuou a gravação para o início e arrancou com a sua projecção:
- As imagens começavam com um ficheiro muitas vezes interrompido dos primeiros passos dados pelo cão-robot, que em partes subsequentes mostravam alguns pormenores da garagem onde se encontravam e num caso ou noutro se fixavam nas personagens que o rodeavam, passando mais à frente para um registo contínuo de toda a vivência partilhada pelo mesmo, provavelmente desde que o responsável pelo seu acabamento o julgara pronto para entrar em actividade ininterrupta. Os únicos elementos que visionaram nas imagens, tinham sido o Dog e um outro humano que o Tobias não conseguira identificar. As imagens seguintes descreviam toda a movimentação efectuada pelo Dogão – sempre na companhia do Dog e do outro humano – desde o momento em que saíra de casa, até ao instante em que descobrira os respiradores do túnel e se introduzira neles: era evidente que a operação era levado a cabo por intervenção do humano, que além de ter conhecimento deste detalhe sobre o túnel, intervinha declaradamente e com conhecimento de causa em auxílio do grupo. O segundo ficheiro tinha um tamanho muito pequeno, transmitindo apenas uma mensagem escrita de esclarecimento geral e uma outra sobre o que cada um dos elementos no interior do túnel teriam que fazer, para resolver cada uma das suas situações. Muito resumidamente o robot tinha sido enviado em seu auxílio a pedido dum grupo externo ligado a elementos exteriores ao planeta Terra e aliados de forças vivendo no interior do planeta – sem dar nas vistas e aproveitando todos os meios locais disponíveis – com o objectivo de solucionar um problema local e de fácil de resolução, para posteriormente e comprovado o esvaziamento do túnel, se dar início ao passo seguinte de regularização do mesmo. Seguiam-se os pormenores de como deveriam proceder até completarem o seu percurso nesta secção, a explicação de como cada um dos elementos seguiriam os seus caminhos particulares e finalmente uma pequena nota para uma última intervenção a efectuar já na saída final, junto ao buraco surgido há poucas horas na Praia do Peneco. Mais confortados e seguros com as novidades transportadas pelo Dogão, o grupo agora com nove elementos prossegui o seu caminho.
Nómadas subterrâneos
A segunda surpresa chegou mais tarde quando atingiram cerca de metade da distância que tinham de percorrer até Albufeira e se depararam com um fenómeno – mais uma vez – inesperado: a parede do túnel no seu lado direito apresentava uma abertura perfeitamente circular, por onde poderiam passar à vontade quatro pessoas umas ao lado das outras, do lado de lá da qual se antevia um outro túnel parcialmente abatido e pejado de rochas e terra, resultado de derrocadas sucessivas, mas que parecia ser curto e poder estar desobstruído, dado se aperceber uma luz com uma certa intensidade vinda do fundo do mesmo. Mas não se conseguia passar para o outro lado: uma película invisível tornava a abertura intransponível, não se vendo nas redondezas nenhum dispositivo que a pudesse desactivar – e talvez pela sua invulnerabilidade, esta não tivesse sido anteriormente detectada. Foram as bio-máquinas que resolveram o problema: no upgrade de emergência realizado logo após a saída do abrigo e realizado no seguimento duma solicitação directa efectuada ao posto de comando central, o software das B-M fora reforçado por novas actualizações anteriormente não autorizadas, de modo a que reforçassem e ampliassem o poder de intervenção do grupo, fornecendo para o efeito todos os detalhes sobre a construção do túnel e informações complementares sobre todos os blocos de emergência instalados. E num desses documentos encontraram a forma de se livrarem da película que os impedia de entrar: aí colocada como forma de isolar o interior do túnel, ela pretendera por outro lado manter um grupo sobrevivente de nómadas Humanos – que se julgava já extinto – em segurança, já que a caverna onde se encontravam instalados se estendia por uma área com disponibilidade de água e de alimentos e completamente isolada do exterior. Apenas a situação actual e a sucessão dalguns acontecimentos imprevistos, tinham impedido ainda algum tipo de intervenção.
Enquanto as duas B-M e o Dogão ficavam a acompanhar dois dos batedores na manutenção da segurança na zona rodeando a entrada da gruta, o restante grupo comandado pelo terceiro batedor deslocou-se para o interior do pequeno túnel de acesso, acabando por se deparar com uma antiga galeria subterrânea que teria parcialmente abatido com o decorrer de centenas e centenas de anos de erosão, provocada por infiltrações e deslocamentos subterrâneos e periódicos de camadas de terras sobrepostas. Era bastante larga e tinha uma altura apreciável, com alguns instrumentos domésticos rudimentares espalhados um pouco por todo o lado, mas parecendo estar assim distribuídos com alguma intenção organizativa, conseguindo-se com uma melhor adaptação à luz natural e de origem para eles desconhecida que a iluminava, descortinar em dois cantos da mesma a presença de dois seres humanos de pele branca e suja, cobertos minimamente com tecidos certamente pelos próprios confeccionados e que ficaram paralisados quando os viram, como que fulminados por uma realidade de tal forma violenta e imediata, que nem os deixava pensar tão confusos tinham ficado. Para além dos dois humanos o grupo nada mais avistou, mas poderiam ser mais os elementos humanos que o integravam, já que a galeria apresentava muitas derivações de percurso e alguns nichos abertos na parede, que pelo aspecto poderiam muito bem ser locais de repouso para outros elementos ocasionalmente ausentes. Mas o que mais os intrigou foi a iluminação natural que aquela galeria apresentava nalguns dos seus pontos, parecendo mesmo pela sua distribuição estratégica que só poderiam ter sido aí instalados por estes ou outros humanos perdidos do mundo.
Segundo os conhecimentos adquiridos pelo Albino durante os seus períodos de lazer dedicados exclusivamente ao estudo dos seus antepassados terrestres (vivendo à superfície ou em territórios subterrâneos) e englobando todas as épocas conhecidas desde as suas origens até aos nossos tempos mais recentes, poucas informações tinham sido disponibilizadas que incluíssem-se este grupo extremamente restrito de humanos – provavelmente marginalizados do convívio e associação com outros grupos de seres semelhantes, por não aceitação e rebelião contra as regras mínimas de convivência impostas pelos mesmos, tudo provocado por um maior conservadorismo de ideias e de práticas assentes desde há milénios na sua liberdade total, no seu nomadismo assumido e na vida partilhada com a Natureza. Dos poucos dados até agora recolhidos e que incluíam este grupo recentemente detectado e agora mantido numa espécie de quarentena protectora, apenas um documento se referia especificamente a estes nómadas, recorrendo ao testemunho directo obtido por duas equipas de expedicionários a zonas tão distintas como as regiões mais profundas da Amazónia e às regiões geladas já no interior da Sibéria. Uma delas realizada por volta de meados do século XVIII e a segunda já nos tempos áureos das diversas expedições lançadas à conquista do Pólo Norte. No primeiro caso passado na Amazónia o contacto tinha sido estabelecido quase que por acidente quando um grupo desses nómadas se preparava para regressar às suas grutas e subterrâneos após mais uma jornada de aprovisionamento, o que era usual realizarem em certos períodos do ano quando necessitavam de reforçar as suas reservas alimentares e materiais: deslocavam-se em grupos numerosos por vezes quase atingindo uma centena de indivíduos, entre guias especializados no terreno, carregadores e guerreiros necessários para a sua protecção. Apesar deste registo de observação presencial e colectiva e dado a expedição ter como objectivo prioritário a descoberta de ouro, apenas um elemento foi autorizado a tentar contactar esses nómadas, o que limitou muitíssimo a sua capacidade de acção e a possibilidade dum contacto mais intenso e mais seguro: a ligação estabelecida foi muito curta e improdutiva, com os nómadas a continuarem indiferentes a sua marcha, quase que o ignorando, mesmo quando este pretendia aproximar-se um pouco mais, dialogando constantemente com o recurso a linguagem gestual e até a expressões faciais expressivas ou mesmo extremamente impressivas. No segundo caso o contacto tinha sido mais intenso e proveitoso, com a estadia consentida de todo o corpo expedicionário junto desses nómadas vivendo no subsolo a profundidades extraordinárias e que acabaram por ficar por um período de tempo que se estendeu por duas semanas, sem que se registassem incidentes. Talvez pelo frio terrível que se fazia sentir nessa época do ano sobre a superfície gelada do Árctico e pelo conhecimento da existência dum grupo de homens como eles sofrendo a violência de todos os elementos climatéricos associados – como o vento gelado que se entranhava na roupa e se depositava na carne, quase fazendo estalar os ossos – os habitantes das profundezas tinham ficado sensibilizados com a situação dos expedicionários e talvez por já terem passado por muitas situações idênticas por vezes dramáticas e irreversíveis, tinham decidido recolhê-los como manifestação de solidariedade e de amizade entre pares. E fora durante essa estadia que muitos elementos tinham sido recolhidos pelos expedicionários sobre esta sociedade desconhecida de humanos nómadas vivendo nas profundezas da Terra. O problema é que pouco restara desse registo, pois no seu regresso a maioria dos expedicionários tinha sido dizimada num acidente provocado pela queda abrupta duma grande camada de gelo que se afundara sem aviso, levando atrás de si dez desses elementos, enquanto dos dois restantes só um deles sobreviveria e em muitas más condições. Os poucos documentos recuperados falavam dalguns pontos particulares do quotidiano destes nómadas, explicando entre outros aspectos o processo utilizado para a iluminação, a fauna e a flora a que recorriam nas profundezas para a sua alimentação e tratamentos e até como escolher os locais com melhor qualidade de ar – nunca esquecendo a água, a sua qualidade e o conhecimento que tinham das reservas disponíveis e dos aquíferos subterrâneos mais puros e acessíveis. Apesar tudo alguns conhecimentos tinham sobrevivido e chegado até hoje:
- A iluminação a grande profundidade seria esmagadoramente de origem natural, graças ao aproveitamento de algumas espécies preponderantes como certos fungos bioluminescentes, à existência de longos planos de água subterrâneas reflectores de certos materiais brilhantes como os cristais existentes nas rochas e até a outros fenómenos desconhecidos à superfície, mas suficientes para criar ambientes iluminados e com largos períodos de persistência. Uma parte muito reduzida dessa iluminação, mantida em reserva para situações pontuais de necessidade de funcionamento ou situações de declarada emergência, seria armazenada em locais apropriados, consistindo essas reservas essencialmente de petróleo, carvão e outros resíduos fósseis;
- Quanto à atmosfera que respiravam a sua qualidade era mantida adoptando como método de controlo o já antigo hábito da utilização de espécies mais sensíveis a alterações significativas a nível da composição do ar, o que os avisava antecipadamente sobre qualquer alteração brusca e perigosa que os pudesse afectar negativamente. No entanto as deslocações contínuas de grupos de indivíduos e a desobstrução constante de todos os túneis utilizados (mesmo que secundários) tinham permitido uma boa circulação de ar entre todos os níveis existentes desde a superfície até às grandes profundidades; até pela utilização de cones verticais existentes em certas fracturas da crosta terrestre e destinados ao escoamento dos gases tóxicos levados pelas correntes de ar ascendentes – que circulando num “ciclo quase perfeito do ar” iam renovando o ar com as subsequentes correntes descendentes – que tornavam o ambiente geral muito aceitável tanto a nível qualitativo como quantitativo; até porque muitas plantas e fungos subterrâneos também iam contribuindo para o processo;
- Finalmente as plantas e os animais: quanto a esses as descrições iam desde alguns dados sobre a base da pirâmide alimentar constituída pelas plantas aí existentes muito diferentes em forma e cor das existentes à superfície – sobretudo imensas variedades de fungos, reproduzindo-se facilmente e “como coelhos” em meras lixeiras – à existência de pequenas florestas pejadas de árvores e de plantas cristalinas levemente iluminadas e rodeadas por um ambiente aparentemente hostil; quanto à vida animal além dalguns animais “importados” e adoptados como o cão, o gato e um ou outro mamífero, era habitual encontrar animais bem conhecidos à superfície como os morcegos, os peixes e repteis como o lagarto – além duma grande variedade de vermes, sendo a familiar minhoca um dos alimentos preferidos desses nómadas, tal como para muitos humanos um prato de mariscos fresquinhos.
Cypridina – um molusco bioluminiscente
Muito utilizado pelos soldados japoneses durante a II Guerra Mundial
Existiam alguns vestígios que pareciam confirmar que o grupo não se limitaria apenas aos dois elementos ali presentes: indícios associados à quantidade de objectos espalhados pela caverna, à quantidade de locais apropriados para descansar, a artigos pessoais de confecção própria ou até mesmo à área disponível – de conforto ou de procura – levavam a concluir que o grupo não excederia os seis indivíduos, mas sem a presença de jovens. Relativamente aos dois adultos que tinham encontrado, estes mantinham-se parados, olhando curiosos e simultaneamente receosos para as movimentações dos intrusos – talvez na expectativa de que estivessem só de passagem e sem nenhuma intenção secundária – mas tentando sub-repticiamente comunicar entre si, enquanto se iam aproximando ligeiramente um do outro. Não foi assim de admirar que aproveitando um pequeno momento de distracção do grupo, os dois elementos tenham conseguido escapar, desaparecendo de imediato na escuridão dum corredor e não mais voltando a ser vistos. Na realidade o mais indicado seria abandonarem o local e preservarem a integridade daquela zona e do próprio grupo que ali vivia. Foi isso que fizeram percorrendo o pequeno corredor em sentido inverso e recolocando no seu lugar a película protectora e inviolável, que o isolaria do exterior: estava na hora de finalmente e sem mais demoras concluírem a última parte do túnel.
Arrancaram para o cumprimento do seu derradeiro percurso no interior do túnel, com a garantia de que o resto do percurso seria tranquilo e feito em total segurança: os relatórios recebidos não se referiam mais à presença de elementos estranhos e perigosos, confirmando a integridade de toda a restante secção e a ausência de possíveis intrusos numa grande extensão à volta da mesma. Além disso tinham que se apressar um pouco mais, pois parte do grupo ter-se-ia ainda que deslocar para um ponto de encontro situado umas centenas de metros a oeste, onde um transporte os aguardava para os retirar dali e recolocá-los noutro sector: apenas ficariam para trás o Tobias e o João (o cão-robot ficaria com o humano, para não suscitar a curiosidade e os rumores entre a população), enquanto todos os outros elementos seguiriam o seu caminho conjunto.
Olhando para toda a sua viagem em retrospectiva, rodeado por um grupo de elementos tão diferenciados e próximos como eram estes seres biológicos e/ou mecânicos, o gato Tobias sentiu-se um ser privilegiado, tanto pela companhia que o rodeava como pela grande aventura que tinha vivido. Todos os componentes do grupo se tinham entendido e nada os demovera da concretização dum objectivo final. E a constatação de que o mundo se estendia para além do que era conhecido, só demonstrava como ele era Infinito e como no espaço mais recôndito e escuro do mundo, ainda e sempre se conseguiria encontrar vida por mais ínfima que fosse. No fundo os humanos eram uns tipos simpáticos e capazes de se adaptarem aos ambientes mais estranhos e hostis, mantendo e respeitando os seus direitos e deveres de grupo com o objectivo de manter a sua coesão e sobrevivência e só derivando para opções de vida não igualitárias e hierarquizadas, pela degenerescência provocada por indução directa (manipulação genética) ou indirecta (instrumentalização subliminar) do seu ADN original: o conflito levado a cabo unidireccionalmente só provocava como resposta da outra parte a ocorrência de actos violentos desprovidos de comunicação, que como tal nunca poderiam levar ao diálogo e consequentemente ao entendimento pretendido. Era uma pena o grupo ir-se desfazer, tanto pelo fim desta viagem inesperada e fantástica que quebrava a monotonia do quotidiano vigente, como pelas trocas de conhecimento que se iriam perder e que em cada momento de contacto interpessoal, reforçavam ainda mais os elos de ligação entre raças e espécies, tão diferentes na forma e distantes no espaço. Mas a vida era composta por este ajuntamento caótico de contradições, que duma forma qualquer se iam agrupando e organizando e que no seu conjunto constituíam e montavam o Universo.
Chegaram à derradeira porta do túnel já a tarde ia avançada no exterior, provavelmente com o amigo do Tobias saltando lá em cima ainda preocupado com a sua prolongada ausência, enquanto ia escavando incessantemente em torno do local onde o robot se introduzira horas atrás, com a promessa veiculada pelo humano que o pusera a funcionar, de que ele iria encontrar o seu companheiro e trazê-lo de novo para casa. Aberta a porta de acesso à secção que ia dar à praia o grupo dividiu-se em dois, com um batedor acompanhado pelas duas B-M a dirigir-se para o extremo desta secção final e com o Albino e o humano que o acompanhava a transmitirem algumas instruções adicionais aos dois restantes batedores; enquanto isso o Tobias observava tranquilamente o evoluir da situação, com o Dogão a seu lado a fazer-lhe companhia. A missão do primeiro grupo seria o de fazer desabar o túnel junto das saídas que existissem perto da Praia do Túnel e da Praia do Peneco, de modo a assim fortalecer o isolamento desta zona subterrânea, impedindo dessa forma qualquer hipótese de transposição para o seu exterior ou interior: a selagem teria que ser rápida perfeita, para a realização da posterior acção de desinfestação que seria realizada mal abandonassem a zona. E teria que ser realizada intervindo simultaneamente no local da praia onde se dera o abatimento, até para evitar qualquer intenção vinda do exterior de investigar este fenómeno com mais tempo e mais profundamente. Quanto ao segundo grupo este tinha três tarefas importantes a preparar e a executar: calibrar uma vez mais o dispositivo de teletransporte para a nova distância agora definida – um local entre dois agrupamentos rochosos situados numa zona adjacente à Orada – onde os aguardava uma nave que os iria recolocar (pelo menos temporariamente) uns noutros locais do globo, outros já no exterior do planeta Terra; colocar o gato Tobias e o humano (que tinha acompanhado continuadamente o Albino) à superfície, utilizando para o efeito um túnel vertical existente sob o monte que ainda suportava algumas das antigas muralhas do Castelo e que por sua vez ligava lateralmente a uma larga cisterna já abandonada e enterrada, mas que dava acesso através dum alçapão secreto a uma zona privada rodeada por vegetação – um deles regressando com o seu pé a sua casa e o outro dirigindo-se para a zona da Serra de Monchique, onde se iria juntar a outros companheiros de vida e de luta; confirmar o bom funcionamento de todo o equipamento de segurança associado ao túnel e a sua total estanqueidade, antes de o abandonarem e darem início ao processo de formatação ambiental.
Fim da 7.ª parte de 8
(imagens – WEB)