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Dois Contos Imperfeitos e Inacabados

Quinta-feira, 21.08.14

A Mente também tem Buracos

 

“Virtualmente – mas com consequências muito reais – o Espaço perde-se muitas vezes (inacreditavelmente) no Tempo: e com este último a oferecer-nos apenas como prémio (ainda por cima sem exclusividade) a pena de Morte.”

 

I

 

Euclides – O Alienígena Perfeito

 

O Alienígena Euclides e o Número Perfeito

 

Estava uma noite perfeita de Primavera na cidade, com o mar calmo e sem ondas a ser percorrido por uma aragem fresca e macia que aliviava os nossos corpos de mais um dia de calor e de trabalho, enquanto alguns turistas já iam enchendo partes da avenida mesmo junto ao mar, usufruindo da delícia e do mais puro prazer duma cerveja fresquinha e dum prato de camarões ou de deliciosos caracóis. Sobre a praia ainda circulavam algumas pessoas, aproveitando um último momento de delícia visual e marítima, antes de finalmente terminarem o passeio e regressarem bem retemperados a casa. E por volta das duas da manhã o contraste já era bem evidente: ainda no início de Maio e com as noites a arrefecerem um pouco face às maiores temperaturas diurnas, toda a esplanada da praia ficara deserta, a restauração fechara e só uma ou outra pessoa se avistava no pontão – talvez na pesca, na conversa ou apenas olhando o mar para com ele adormecer.

 

Pelas duas da madrugada quem estivesse a olhar do alto do Pau da Bandeira não veria lá em baixo nada a mexer, fosse em terra fosse no mar: só mesmo as lanternas dos pescadores balouçando ao som das ondas do mar e a iluminação publica que iluminava a zona da praia. Nada mais. Assim quando chegamos às escadas para descer até à praia não se via ninguém: os quatro descemos até à zona da Praia dos Pescadores, dirigimo-nos até ao pontão e preparamos os nossos fatos de mergulhadores. Minutos depois chegaram outros dois elementos do grupo que ficariam cá fora a controlar o restante equipamento, enquanto os outros quatro mergulhavam. Esperavam que o que o Tiago tinha afirmado repetidamente fosse verdade, não pensasse ele que não tinham mais nada que fazer senão serem enganados e gozados. O Tiago – que também vinha connosco – afirmava ter visto há duas noites atrás numa ida com os pescadores ao mar, uma luz que vinha do fundo das águas e que – o que era mais estranho – parecia deslocar-se rapidamente sob a mesma tendo a determinado altura como que explodido em luz e desaparecido logo de imediato. Os pescadores ainda tinham reparado por instantes no repentino fenómeno luminoso, mas face à presença de outros barcos iluminados, tinham acabado por ignorar o acontecimento. Mas o Tiago achava tudo muito estranho e não descansou enquanto não nos enfiou todos dentro de água. Entraram na água era já três horas da madrugada – com a temperatura da água bastante amena e acolhedora – mergulhando no imenso mundo líquido exactamente às 03h 05mn.

 

Às 03h 10 sentiram um pequeno incómodo no corpo – como se este estivessem com um ligeiro formigueiro – constatando o aparecimento dum pequeno ponto de luz movimentando-se debaixo de água e aproximando-se deles rapidamente. Já a poucos metros de distância o ponto luminoso pulsou subitamente, expandindo-se instantaneamente e engolindo-nos a todos duma só vez: como que apanhados por um redemoinho fomos todos atraídos para o centro do buraco que se formara diante de nós, acabando os quatro elementos por desaparecer no seu interior e fechando a porta atrás de si. Ao mesmo tempo e para trás o cenário fora reposto. E pela mesma altura eles chegavam à Praia dos Pescadores: eram 03h 00mn. Algo de estranho se estava a passar: afinal de contas regressavam de novo ao local de partida, emergindo no sentido contrário ao do seu objectivo, ainda por cima quando tinham precisamente acabado de mergulhar dirigindo-se em direcção ao interior do oceano Atlântico. Lembravam-se da presença crescente duma luz, de como esta subitamente se expandira e os rodeara, e duma estranha e profunda sensação de absorção e partilha, seguido dum forte desprendimento (em contraponto, aglutinador de matéria) que os acabara por libertar e ali os fizera emergir. Mas não viram os seus outros dois companheiros, que tinham ficado na praia.

 

A imensa paixão pela geometria dos números levara o nosso Alienígena ao conhecimento de um dos maiores matemáticos terrestres da antiguidade, o grego Euclides. Talvez um dos maiores matemáticos de sempre e um dos mestres que mais contribui na época (o seu nascimento reporta-se a III A.C.) para elevar Alexandria ao estatuto máximo de capital mundial da cultura e do saber. Nunca esquecendo a sua obra magistral “Os Elementos”. Mas uma das coisas que na altura mais lhe chamara a atenção fora a compreensão que Euclides parecia ter sobre o conceito de geometria – do plano e por sequência do espaço – relacionando-a com diversas dimensões construtivas e estruturais que não se limitariam apenas aos parâmetros reais conhecidos – como também ainda a outros já presentes mas ainda por descobrir – o que transportaria futuramente o estudo da matemática à noção de infinidade (concorrencial ou paralela) e à edificação da teoria dos multiversos: “Não existem estradas reais para se chegar à geometria” (Euclides). A outra curiosidade que lhe despertara a atenção e que o levara de novo ao aprofundamento do seu estudo sobre o imperdível mundo dos números (e respectivos algarismos constituintes e por constituir), fora a particularidade da direcção assumida desde o início pelo seu estudo tentando em vez de realizar operações entre eles, integrá-los e entendê-los – sobretudo analisando, compreendendo e executando, as relações existentes entre eles. O que mais o tocara pela sua força e pela sua simplicidade fora desde logo a noção de Número Perfeito. E por homenagem sentida atribuíra-se o nome de Euclides.

...

 

II

 

Cansaço sob a forma de Epidemia

 

 

 

Desempregado e sem nada que fazer resolvi ir até à baixa da cidade e ver como estava o estado do mar. Já na entrada da praia do Túnel e como muita gente se acumulava no seu trajecto, resolvi subir as escadas laterais e ir dar uma espreitadela até à praia do Peneco. Desci pelo elevador e como estava um tempo quente e asfixiante, decidi que estava na hora certa para ir ao banho: sentia-me húmido e colado, com a sensação a não ser mesmo nada agradável. A água estava inicialmente fria mas quase que como por magia logo ficou a uma temperatura verdadeiramente fantástica. Meia hora depois saí finalmente da água e lentamente limpei-me, vesti-me e dirigi-me de novo para o elevador. Enquanto esperava a sua chegada ainda pude presenciar algumas pessoas a saírem do interior da água a correr, um pouco alarmadas e amedrontadas com os gritos de dor e aflição que alguns dos veraneantes lançavam de locais diferenciados mais à frente e junto às rochas, sem se entender bem porquê. Pelos vistos uma quantidade apreciável e anormal de peixes-aranha no local, poderia estar na origem do que estava a suceder. Isolada a zona e com as pessoas mais calmas, lá subi no elevador até ao hotel Rocamar. Acabei de limpar melhor os pés e ainda me pus uns minutos a observar a praia lá em baixo e o mar calmo até ao horizonte. E foi aí que uma imagem extraordinária – e que atraiu o olhar de todos os presentes na praia – começou a atravessar o horizonte dirigindo-se de oeste para este: como se estivessem numa jangada um grupo de pinguins atravessava a baía de Albufeira, colocados sobre o que restava de um antigo icebergue.

 

 

Quando cheguei a casa liguei logo a televisão para ver se as notícias já se referiam ao caso. Pelos vistos ainda não tinham conhecimento de nada, motivo pelo qual me pus a fazer zapping a ver se surgia alguma novidade noutro canal de informação. Mas nada feito. Apenas um dos canais me despertou mais tarde a atenção, referindo-se este às últimas teorias lançadas pelos geólogos e outros cientistas, que afirmavam existir um mar subterrâneo no interior do nosso planeta na zona de transição entre o manto inferior e o manto superior. Apesar de tudo tal facto não me afastou do episódio ocorrido na praia e até me pus a pensar se os peixes-aranha não teriam algo a ver com os desenquadrados pinguins, acomodados no seu insólito icebergue: talvez algo de inabitual se estivesse a passar a nível da água contida no oceano, que provocasse o aparecimento de situações estranhas na sua composição e temperatura. Esse facto poderia influenciar o comportamento dos animais marinhos – devido a alterações significativas provocadas no seu ecossistema natural – levando-os a ultrapassar mesmo que involuntariamente o seu habitat tradicional. Na verdade toda a gente tinha conhecimento do degelo registado nas calotes polares, originado não só pelo por muitas vezes já falado aquecimento global, como também pelas erupções que se iam registando em vulcões submarinos, situados debaixo das espessas camadas geladas. Enquanto isso a televisão continuava a debitar informações sem qualquer tipo de interesse, pelo que resolvi ir buscar o meu tablet. Nos Estados Unidos da América os sismógrafos tinham detectado uma sucessão de sismos de média dimensão na zona do parque de Yellowstone, os quais fugindo um pouco aos parâmetros normais do seu ciclo geológico tinham começado a preocupar os sismólogos e a alarmar os residentes na região envolvente. No meio de notícias relacionadas e emaranhadas entre si ainda apareciam os apoiantes da existência de um oceano interior, afirmando que a sua localização estaria nas profundezas geológicas do seu próprio país: um super-vulcão como o de Yellowstone, associado a um oceano desconhecido aparentemente localizado bem nas profundezas rochosas da região, poderia transformar-se em determinadas circunstâncias num evento de proporções apocalípticas. Parecia que estavam a falar do fim do mundo, mas fora as cenas estranhas que tinha presenciado, tudo o resto estava normal.

 

 

Já o Sol se tinha posto quando tocaram à campainha da porta. Ao abri-la o meu espanto não podia ser maior: perante o que via senti logo um grande calafrio percorrer a minha coluna vertebral, suores frios e de medo a porem-me a pele eriçada e molhada de suor – quase como se alguém me tivesse posto na posição de pausa – o que me deixou temporariamente paralisado e sem saber como reagir. Sem que eu reagisse o visitante aproveitou a ocasião para entrar em casa, acabando por se dirigir à sala de estar situada mesmo em frente do hall de entrada, sentando-se de seguida e tranquilamente no grande e confortável sofá ali instalado. Ainda ficou um pouco a olhar para mim mas, talvez de modo a que eu fizesse reset e recuperasse psicologicamente, virou-se para a TV e aproveitou o intervalo de inacção para beber um líquido brilhante e escuro, para mim desconhecido e que trazia dentro duma pequena garrafa. E duma forma normal e reflexiva, mas parecendo um pouco automática – compreensível, mas denotando previsibilidade – ainda teve tempo para dizer: “os líquidos são sempre necessários, até para a minha manutenção”. Quando me sentei em frente dele – ainda tentando recuperar da surpresa inicial – ele abriu a sua camisa e aí a minha suspeita confirmou-se: estava perante uma biomáquina ou de algo de parecido. Afirmou mais tarde ser originário de um pequeno planeta muito semelhante ao nosso, pertencente ao sistema rodeando a estrela binária Epsilon Boötis (localizada a mais de 200 anos-luz de distância da Terra), tendo na sua viagem de vinda permanecido momentaneamente (para um upgrade de conhecimentos) numa estação que orbitaria a Terra há já vários milénios (nem sempre visível por questões de segurança) e que ele denominou misteriosamente como o Cavaleiro Negro (já ouvira esse nome noutro lado qualquer). Imóvel e silencioso, ouvi então o que ele tinha a dizer. Resumidamente e para não perder mais tempo com os meus receios, interpretações e negações da realidade, o que ele afirmou e ao qual deu mais importância – justificando assim a sua presença – foi que “o planeta Terra estaria a atravessar uma fase da sua evolução bastante preocupante tanto a nível geológico como a nível social, situação essa que poderia ser agravada por outras contribuições externas suplementares e até por uma possível e inesperada intrusão estrangeira, mas com colaboração interior”. Ele estava ali para ajudar e colaborar na procura e proposta de soluções, pois os sintomas do problema (que já aí estava) eram cada vez mais intensos, consecutivos e alarmantemente visíveis: seguindo as preocupações válidas e responsáveis demonstradoras dum conhecimento colectivo e superior – elaboradas e divulgadas pelo seu grande amigo Al Gore – a biomáquina chamava-me a atenção de que “eram os pequenos detalhes que faziam a grande obra e que a ignorância do mais pequeno pormenor poderia representar o fim de qualquer espécie – mesmo uns pinguins surfando um bloco de gelo, perto do Verão e a caminho do mar Mediterrâneo”.

 

 

Quando recuperei a consciência já não me encontrava em minha casa. Pela janela do quarto observei a paisagem que me rodeava e de início parecia ser um ambiente muito semelhante aquele que habitava. Só que o colorido era mais intenso, a calma absoluta e sem intrusos e o quadro geral que apresentava demasiado limpo e organizado – talvez puro e parecendo até agora intocado.

...

 

(imagens – Web)

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publicado por Produções Anormais - Albufeira às 19:59