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A Vida do Vizinho Moisés e das suas Bestas de Companhia

Domingo, 04.12.11

Moisés – Desenho de Alenka Sottler

 

A vida estava vazia e o zero era o seu significado

 

1

 

Um dia recebi na minha caixa de correio um postal do pastor de rebanhos conhecido na sua terra pelo nome de Moisés, desenhado num sonho de uma noite de Inverno pela sua amiga e confidente de há muito tempo e a mim enviada como um convite à descoberta das durezas e belezas desta vida e à partilha sem interesses ou segundas intenções escondidas, do espaço a partilhar com ternura e amor, com os animais e com a natureza que ali se nos ofereciam.

 

2

 

O pôr-do-sol aproximava-se rapidamente e os animais começavam a impacientar-se com o atraso na recolha à sua zona de protecção. Lá ao longe as pessoas regressavam rapidamente às suas habitações, recolhendo no piso inferior os animais para os proteger do frio e dos seus predadores e ao mesmo tempo para aquecer com o ar quente da sua respiração, o piso superior onde viviam e iriam pernoitar. A união das espécies mesmo que inconsciente, era perfeita e o calor emitido pelo corpo dos animais era aproveitado na sua plenitude, para manter durante a noite e para todos, o aquecimento central desta casa temporária. Na escuridão que se ia instalando lá na aldeia, as luzinhas das velas tremeluziam entre as cortinas íntimas e protectoras das janelas, enquanto o fumo quentinho das lareiras, ia subindo como espadas flamejantes pelas eternas e encantadoras chaminés, erguidas com orgulho, para assim nos fazerem atingir o céu. Na serra em volta e à procura de uma fogueira para se aquecer contra as investidas deste vento penetrante e arrepiante, Moisés sentira-se mais uma vez abandonado: a madeira molhada custara a pegar e nem mesmo as pinhas e os arbustos tinham ajudado à sua criação e formação. O frio era agora, o seu maior problema.

 

3

 

A noite tinha sido dura de passar, apesar da capa grossa que protegia Moisés do frio e da humidade, que se ia enfiando progressivamente pela abertura da gruta onde se protegera desde há dias, com todos os seus animais. As dores de cabeça, provocadas pela persistência do frio gelado da noite em invadir o seu corpo e penetrar os seus ossos, juntava-se a uma fraca e mal requentada ceia ingerida no fim do dia anterior, que lhe fazia pesar ainda mais o seu velho corpo, prestes a quebrar sob o peso de muitos anos de luta pela sobrevivência.

 

4

 

O dia levantara-se cedo e o rebanho começara a mostrar-se irrequieto e pronto para sair de imediato, à procura de água e alimento. A ovelha Chulé adiantara-se às suas colegas e protestava veementemente junto à vedação que o pastor montara na noite anterior à entrada da gruta, para que elas não resolvessem sair de noite, sem o avisar. As mais jovens tinham passado pelos buracos na vedação, que as mesmas tinham descoberto durante as suas brincadeiras da noite e usufruíam agora e em antecipação às demais, do prazer do calor que o Sol lhes atirava, sobre o seu protegido corpo de lã. Moisés desimpediu a passagem e o rebanho começou mais um dia de pastoreio. O dia estava claro mas um pouco ventoso, com o cume das montanhas cobertas por pequenos mantos de neve e pouca gente visível a movimentar-se na aldeia. Algumas bestas passeavam-se pelos campos e a passarada já se tinha toda posta a cantar. O pequeno riacho deslizava entre as margens verdejantes e via-se uma mulher a chegar com a sua carga de roupa para lavar, no tanque cedido pela junta de freguesia, situado muito próxima da loja de mercearias da prima Celeste Miquelino.

 

5

 

Moisés sempre fora um nómada solitário que escolhera esta vida, porque tinha sido esta que a vida lhe oferecera. Nunca pedira nada para ele, apenas a companhia passageira daqueles que ia encontrando ao longo da estrada e das serras que percorria. Esperara durante muitos anos que se confirmasse, para o seu mundo também, que a terra fosse redonda e que com isso pudesse encontrar, mesmo que de passagem, alguém com quem pudesse compartilhar o mundo que ele criara. Mas ao contrário das histórias e daquilo que elas contavam, o mundo era muito maior do que aquilo que alguém alguma vez supusera, sendo difícil e senão mesmo impossível, pelo menos neste mundo, encontrarmos o nosso reflexo de infância, com toda a esperança e ilusão, ainda imaculada. Moisés não era um santo, apenas um caminhante de viagens, na companhia de outras bestas, solitárias como ele.

 

O Céu é dos pobres de espírito – e tu também querias lá estar!

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publicado por Produções Anormais - Albufeira às 00:58